Wil Delarte: “A contradição e a controvérsia percorreram 60 anos de televisão ao lado seu lado, Senor, em ritmo de festa”
Foto: Reprodução / SBT |
Por Wil Delarte: Parece que foi ontem que aquelas portas se abriram, Senor, e nunca mais saíram de minhas memórias. Tinha um homem e uma necessidade óbvia: muletas.
A história era comovente e eu, menino de tudo, não perdia um programa no domingo à noite, ficava na torcida e, geralmente, era recompensado junto com o participante. Porém, naquele dia você simplesmente ignorou o fato de que um acidentado, tornado paraplégico, precisava de uma simples muleta.
Algo no mundo parecia ter sido revelado à medida em que aquelas portas se abriam para o vazio. Até televisão e geladeira, jogo de cozinha inteiro, já tinha rolado, né? Mas muleta não. Até vídeo cassete com fitas pornôs tinha rolado, né Senor? Mas muleta não.
Muleta não, muleta não... Esse mantra, ao que parece, perseguiu-me por toda a vida, como uma maldição ou alerta para não me apoiar muito em nada.
As Portas da Esperança foi meu primeiro grande aprendizado sobre a vida, a vida real, que não dá massagem quando você mais solicita. E foram inúmeras outras lições que seus programas, Senor, ensinaram-me e formaram meus valores: mais que Freud e Machado de Assis, foram seus programas que moldaram o meu caráter.
Um povo que topa tudo por dinheiro é um povo que já nasce pré-autorizado a prestar o ridículo de se topar tudo por dinheiro, né?
Os seus domingos eram espelhos da sociedade: de um lado a gordofobia, a misoginia e o machismo, de outro, um dos poucos veículos a trazer uma drag quem como destaque, a ter um quadro só para travestis. A contradição e a controvérsia percorreram 60 anos de televisão ao lado seu lado, Senor, em ritmo de festa.
Sabe, após sua morte por aqui, inúmeros foram os depoimentos emocionados que te colocaram num altar, e incontáveis também foram os ressentidos pela “escrotidão absoluta do seu ser”, palavras que recortei. Entre o “santo” e o “escroto”, uma palavra mais se destacou: gênio.
Chamá-lo “gênio da comunicação”, aliás, é um clichê né, desses que você tanto gostou de criar, chavões, frases eternas como “vamos abrir as portas da esperança!”... Mas, o que acontece quando a esperança não vem para sua própria festa?
Muito se fala que você apoiou a milicada na ditadura, e quadros como “A Semana do Presidente” não te ajuda em defesa, né? Mas algo mais profundo parece conter nessa relação: hierarquia. Você, em verdade, não gostava de ficar mal com nenhum presidente ou governador, sempre preferiu atraí-los, e tem aí uma jogada comercial esperta, não é mesmo?
Você cumpriu à risca a trajetória do “herói capitalista” que emerge da massa vendendo bugigangas e chega ao mais alto pódio, o sonho liberal realizado que, aliás, Luiz Inácio também concretiza. Um símbolo do capital e “maior patrão do país” não poderia afrontar outros patrões: assim você dava a mensagem para seus subordinados, com sorrisos, piscadelas, e um vá trabalhar topando qualquer coisa por dinheiro.
E de jogada comercial e de marketing você entendia, ah se entendia! Baús de supostas felicidades, capitalizações controversas, marcas estranhas e populares, tudo entrou no seu balaio de dinheiro, tudo que tocava, aliás, virava dinheiro, como seu nome e marca, Silvio Santos.
Mas esperança não. Muleta não... Aqui, temos que ralar para ficar de pé, olhar de frente e não cambalear ao manter a cabeça erguida, vender a marmita do almoço e comprar a da janta, fazer hora extra para acumular num banco de horas os momentos que nunca mais viveremos, mas essa, Senor, é outra história.
Nós, coadjuvantes e protagonistas desse show, seguimos cá em ritmo alucinado, ignorados em nossa própria festa.
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'Cartas para Ontem' , no Cotia e Cia