Para o Menino Deus da fogueira | Cartas para Ontem #5

“... você se lembra, quando eu era moleque de tudo e de tudo moleque, e a vida toda cabia em vinte e quatro horas, nós conversávamos o tempo todo e ainda mais nesses tempos de festa junina..."

Foto: Arquivo pessoal / Wil Delarte 


Por Wil Delarte

Eu sei que você já recebeu muitas preces, terços, textos melhores e à altura, como Caeiro (na pessoa do Fernando) certa vez te desenhou; e de lembrar isso agora, noto que a imagem de você fugindo para o sol, descendo num primeiro raio, é a que mais me comove até hoje quando me deparo com o poema, e você sabe, esse Jesus Menino dele, você mesmo, sempre fora também o meu.

Você se lembra, quando eu era moleque de tudo e de tudo moleque, e a vida toda cabia em vinte e quatro horas, nós conversávamos o tempo todo e ainda mais nesses tempos de festa junina. Para mim você sempre foi um misto de São João Batista com erês de terreiro, eu adorava imaginar seus desenhos malucos no olho fogueira, tinha a certeza absoluta de que tínhamos um mistério ali, e um trato.

O trato era o de que ninguém mais saberia que tínhamos esse trato, e que você se revelaria para mim todos os anos dentro das fogueiras de São João. Mas não foi bem assim que aconteceu, né? Nós dois gostamos demais do mistério para esperar qualquer coisa, o mistério sempre foi e será urgente.

Aí eu inventei outras mágicas com aquelas pedrinhas, lembra? No poema eram cinco com as quais vocês brincavam, mas eu preferia o número sete. Na mata atrás de casa era cheio delas, e eu sempre soube que eram mágicas.

Juntei então sete pedras, algumas folhas de samambaias, colhidas ali mesmo na mata, peguei escondido um prato branco da minha mãe, coloquei água e acendi em seu centro uma vela azul. Pronto, estava feito o milagre e lá estava você de novo, inteiro como cabe a um deus, todo disposto a se revelar.

Num novo trato, eu faria um som com a língua, estalando-a no céu da boca toda vez que quisesse que de seu céu você escorregasse. Também tinha um assovio na sequência, mas quantas foram as vezes que mesmo sem ele você veio, doido, pulando entre as cores.

“A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.”


Quando minha galinha Julieta morreu, eu fiz esse som, mas você devia estar muito ocupado com as outras crianças todas do mundo, né?

Parece que você foi se ocupando demais com todo o universo, e suas estrelas e asteroides e chuvas de meteoros, e eu também fui ficando com as lições de casa, com os trabalhos de casa, e brincadeiras com outras crianças reais, de carne e osso como eu.

Acho que quando comecei a ter amigos de carne e osso, a necessidade de um deus só para mim foi se perdendo, e voltamos àquela fase de encontros anuais somente na fogueira. Pode ser. Sei que sinto a sua falta, há anos que nem nas chamas de São João eu tenho lembrado de te procurar.

Dia desses, enquanto pulava e brincava com suas pedrinhas, minha filha me perguntou se no ano dois mil e infinito o universo seria todo engolido por um buraco negro. Fiquei surpreso com a pergunta, e sem saber o que dizer. Dois mil e infinito parecia um lugar bem longe no tempo. Foi quando aconteceu... Na bolinha do olho dela, naquela jabuticabazinha em chamas, um pontinho amarelo se mexeu. Sabia que era você.

Eu ri. Ela também. E nós sabíamos o porquê... Eu não tinha a resposta, mas mesmo assim disse que, sim, provavelmente tudo seria engolido pelo nada. Ela riu mais e foi aí que saquei tudo: ela tinha um trato, um trato com o mistério e seu Deus Menino, era dali que brotavam todas as perguntas malucas e o brilho infinito de seus olhos.

Fiz ali um trato comigo mesmo, que na fogueira desse ano eu contaria nosso segredo a ela e daria sonhos teus para ela brincar. Eu sei que vocês já devem é estar combinando algo também.

Ah, eu sei.


De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'Cartas para Ontem' , no Cotia e Cia

 

 



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