Para aquele menino sem dentes | Cartas para Ontem #4

“Incrível como algumas imagens desaparecem e outras ficam para sempre, né? Então viva isso, viva, que vai passar”

Foto: Arquivos Pessoais

Por Wil Delarte: Se te escrevo nesse instante em que acaba de perder os dentes aí, não é por nada não, é pela coincidência desta foto me cair no colo nesse outro instante aqui. Repare a data, maio de 1988, exatos 36 anos deste agora.

Louco, né? Daí a 5 meses você ganhará uma nova Constituição, a dita “cidadã”, mas é justo que nem saiba o que seja isso, continue como está, hasteando a bandeira e a decorar nosso hino, é justo que continue.

Também é justo que não se aperreie tanto, outros dentes vão surgir, e essa história de “banguela” nem vai pegar, sabe? “Orelha de Topo Gígio” também não... Tá, é mentira, isso vai te acompanhar por uns 2 ou 3 anos ainda, mas relaxe, vai passar.

Seus primos ao lado, Anderson e Leandro, vão crescer e se mudar para o Mato Grosso, ficará anos e anos sem os ver, mas até lá, muito ainda vão aprontar juntos. Num triste dia você vai receber a notícia que um deles foi acometido por uma doença que te deixará quebrado, com vontade de abraçá-lo muito forte, mas nem chegará a dizer isso a ele, não até agora.

Foi bem por esses dias aí que ele, o Leandro, o da ponta esquerda, questionou se você já tinha visto uma “Biana”. E claro que você disse que já tinha visto, né?

Escrevi o nome em maiúsculo porque sempre me pareceu um nome próprio. Passados os anos, você ainda ficará com esse nome na cabeça, e em algum momento pensará se tratar, então, não de toda a “Biana”, mas do clítoris das meninas, aquele pontinho que tem cara de “Biana” mesmo. Mas sei lá, nunca mais você ouvirá esse termo e, quer saber, ele deve ter é inventado esse nome. Vocês viviam pensando nessas coisas, né? Vou te contar um segredo: isso não vai passar.

Olhando-te daqui, nesse exato instante em que está aí, volto a sentir aquela mesma mariposa que, sei, está batendo em seu peito. Sabe, ela é linda, sorriso lindo, negra e linda, cabelos crespos encaracolados e lindos, mas, no máximo, vocês serão Mister e Miss Caipirinhas na Festa Junina do primeiro ano. Mas vou te contar outro segredo: outra negra e linda será tua companheira, até aqui por vinte e dois anos, mas sem muito spoiler, viva aí essa sensação de amor eterno, é justo que seja assim.

Qual era o nome dela mesmo? Ah, Andreia! Sou capaz de sentir o cheiro do cabelo dela no dia da dança, as pintinhas pretas no rosto, as flores no vestido, e, depois, um vazio... Não faço a mínima ideia para onde ela foi e em que momento sumiu de nossas vidas. Incrível como algumas imagens desaparecem e outras ficam para sempre, né? Então viva isso, viva, que vai passar.

O bulling no segundo ano vai ser terrível, o carinha grandão que bate em todos e rouba lanches será mesmo um problema. Quanto a isso, sabe, não tenho conselho. Sei que vai superar, que também vai passar, mas quando volto àquelas cenas, a mesma dor no peito, a mesma raiva parece ainda estar aqui.

Não esquenta que essa palavra “bulling” ainda nem existe aí, concentre-se apenas em se fortalecer de algum jeito, faça o que você acabará fazendo, finja ser seu amigo e leve dois lanches, um para você e outro para ele. Esse presente vai quebrar suas pernas e, você nem imagina, ainda acabará sendo o protegido dele.

Caramba, só de imaginar tudo o que poderia te escrever nesta carta, depois que os novos dentes passaram por aparelho, cáries, canais e diversas obturações; agora que quatro dentes novos despontaram em minha filha e, poxa, dessa novidade é até difícil de te falar, mas vou te contar um último segredo: tudo o que viver daí em diante será para chegar até esse momento aqui, até os dentes novos da pessoa que você mais amará na vida.

E será um amor tão grande que contaminará todos os outros amores.

Depois de alguns anos e algumas provas, você reaprenderá a amar seus pais como ama aí nesse exato instante, e terá tanto amor sobrando para dar para um tanto de parentes e um tanto de amigos, e talvez isso seja o mais importante que poderia te dizer agora: tudo o que é real, não passa, no máximo se transforma em algo ainda mais verdadeiro.

Com o tempo, até você eu aprendi a amar. Você, com todos os seus defeitos. Você, com todos os traumas e sombras. Você com a vaidade e seus medos. Você, assim, por inteiro... E qual foi o segredo? Sabe aquela canção que você ainda não conhece e diz “o poeta não morreu, foi ao inferno e voltou”? É mais ou menos isso, e sobre o inferno, ah, não tem jeito, você vai conhecer por si só e, sabe, por mais terrível que será, nada, nada poderá ser diferente.


De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'Cartas para Ontem' , no Cotia e Cia


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