Wil Delarte: “Eu te amava incondicionalmente, mesmo quando as pessoas viravam os olhos para deixar de te ver, por excesso de pena ou sei lá o quê. Tenho pena dessa gente que nunca parou para ler a vida em seus olhos”
Foto: Wil Delarte / Arquivo pessoal |
Por Wil Delarte
Dias desses eu recebi no celular uma foto sua. Há quanto tenho havia me esquecido de lembrar da sua imagem, irmã?
Dias desses eu recebi no celular uma foto sua. Há quanto tenho havia me esquecido de lembrar da sua imagem, irmã?
O poeta Waly Salomão tem um verso que diz que a memória é uma ilha de edição. Editadas ou não as lembranças, possa ser que o tempo só passa e tudo acaba encontrando o seu devido lugar no tempo, penso.
Não, minha irmã, eu não havia te esquecido por longos anos: você foi se tornando, com os anos, eu mesmo. A memória também é matéria da vida que editamos, caro poeta.
Você foi como um anjo que passou em nossas vidas e deixou a todos mais fortes, mais humanos.
Na foto, estamos à frente de um carro vermelho - eu à esquerda, de cabelinho “tigela”. Filtro e sol dos anos 80... Também estão cinco primos e você, Tatiane, por volta dos seus cinco anos, no colo da nossa Tia Luiza. Ah, a Tia acabou de passar por uma cirurgia delicada, mas tá firme e forte, como sempre. Aquela ali ainda enterrará a todos nós! Todos os dias ela me manda um bom-dia e uma benção. Faço questão de respondê-la, todos os dias. Eu a encaminhei essa foto e ela chorou. Disse que te amava e você tinha um cabelo lindo.
É mesmo, que cabelão você tinha, irmã... Liso e encaracolado, castanhos. Gostava de cheirar e pentear seus cabelos. A vida que nos deu você, também nos tirou. Possa ser que ela, a vida, nem tenha te dado a chance de compreender que você passou por aqui.
Como posso te dizer? Você nasceu com uma paralisia cerebral que a impedia de se desenvolver como qualquer criança. Dois anos mais nova que eu, você faleceu pouco antes dos sete e, nessa idade, ainda como uma criança de colo que mal chorava.
Naquela época, a ignorância do olhar curioso da sociedade era algo que, lembro-me bem, afetava a todos nós. Eu te amava incondicionalmente, mesmo quando as pessoas viravam os olhos para deixar de te ver, por excesso de pena ou sei lá o quê.
Tenho pena dessa gente que nunca parou para ler a vida em seus olhos.
Quando recebi a foto, instantaneamente me veio o cheiro do leite quase azedo que sempre ficava em sua roupa. Você não deve ter ideia, mas como não conseguia fazer sucção para mamar, tínhamos que te dar o leite de colher, e esse escorria entre os dentes, pelos lados da boca, obrigando-nos a recolhê-lo e devolvê-lo à mesma boca, e assim sucessivamente até você conseguir ingerir alguma coisa.
Seus dentes, irmã, foram todos retirados... Você tinha uns surtos que a fazia morder os próprios lábios, sabe? Lembrando-me agora, parece que ainda vejo você com os dentinhos todos cravados, com uma dor estampada nos olhos de quem, se pudesse, diria: eu não sei o porquê.
Eu também não sei, irmã, ninguém sabe. Suas perninhas tortinhas, os braços também, você era tão frágil que nos deixava assim, mais fortes. Mais humanos.
Você tinha algo mágico nos olhos que nos penetrava... A impressão que eu tinha era a de que eu sempre sabia o que você estava pensando. Que paisagem estaria editando? Uma ilha vazia? Na minha ilha você encarnou em sua irmã, depois em minha filha, e voltará como neta e bisneta de outras filhas. Você, irmã morta, é matéria da vida que nos completa, uma peça de um quebra-cabeça esquecido, uma forma em busca do conteúdo.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?, diz outro verso daquele mesmo poema. Talvez, irmã, estejamos todos em um sonho editando ilhas na realidade.
Sabe, os yorubas têm um nome para uma família recorrente de crianças especiais que nascem já com dia agendado para voltar, em regra antes dos sete: são os "abikus". Eu também faço parte dessa família, e o fato de estar ainda aqui, bem, é uma outra história que um dia ainda hei de contar, irmã. Você me ajuda?
Saudade não sei é o nome. Talvez amor.
Talvez esperança, Tati.
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'Cartas para Ontem' , no Cotia e Cia