Em seu primeiro artigo da nova coluna, Wil Delarte dispara emoção e sensibilidade ao escrever uma carta de aniversário para a própria filha no futuro
Maria Flor, filha do colunista Wil Delarte. Foto: Arquivo pessoal |
Querida Maria.
A essa altura, com seus 21 anos aí no futuro, você já deve ter percebido que tenho o hábito de te chamar mais de “Maria” que de “Flor”.
Sua mãe até quis te chamar de “Flora”, nome da bisa que não chegou a conhecer, mas não pegou... O que também seria lindo, não é mesmo?
Não sei se carregará isso com os anos, mas exatamente neste último mês você criou o hábito de dizer “não é mesmo?” ao final de praticamente todas as frases. E eu acho a coisa mais linda... Mamãe também acha. Pegamos essa mania também.
Poxa, vida. Você aí com 21 eu aqui, vendo nascer seu sétimo ano... Esta carta, filha, é para comemorar essas primeiras grandes primaveras, com a fé e a esperança de que você a receberá bem aí e a lerá também em comemoração ao encerramento do seu terceiro septênio.
O filósofo Rudolf Steiner e sua Antroposofia nos alerta para o fato do quanto é importante esses primeiros sete anos... Sei que aí você já deve compreender bem isso, e não vou me estender, só quero deixar registrado apenas um pouco do que foram esses primeiros anos e o mundo que você encontrou por aqui.
Mas, antes, fico pensando... Pensando, por exemplo, se a paixão já bateu à sua porta, que faculdade, porventura, estará fazendo... Saiba que você sempre teve muita destreza com o corpo, com a lógica, sensibilidade artística e empatia com tudo o que é vivo.
Dito isto, parece-me que você poderia ter se encaminhado a qualquer área que você quisesse, ou também pode estar aí, em seus 21 anos, procurando encontrar um caminho. Eu encontrei o meu quando você nasceu naquela manhã de carnaval.
Era o ano de 2017 e, como uma verdadeira porta-estandarte, você foi abrindo alas após sete horas de parto humanizado. Estranho né, humanizado... “Humanizado” deveriam ser todos os partos!, e o seu, filha, foi muito mais que isso, foi um ato de... Foi um... Não tenho nomes, sabe? Nunca tive palavras para descrever esse momento.
Imagine só, eu, que tanto me enamoro delas, das palavras, não encontro uma sequer para o grande instante: 17/02/2017 às 7hs. São muitos setes, não é mesmo? Cada segundo desse momento, filha, eu carrego dentro como uma fotografia do infinito. Seu primeiro choro foi tipo uma explosão cósmica! Sim, foi o melhor dia de nossas vidas.
Mas nem tudo foram e são alegrias, há muito medo em tudo isso. Quando você teve sua primeira febre alta, tão precocemente em seu terceiro dia, eu tive medo, muito medo de te perder, e você não parava de chorar. Um dia descobrimos que o sininho de madeira que ficava ao lado do seu berço era mágico. Quando o papai tocava, você se calava. Foi aí que nunca mais duvidei de magia.
O medo de te perder sempre foi desmesurado, eu sei, mas ainda hoje, sete anos depois da sua primeira febre, a cada resfriado seu eu o sinto lá, e crescendo... Viver deveria ser aprender a lidar com a morte, mas nunca será assim quando se tratar de filhos. Filhos nasceram para a posteridade, para a eternidade, e gosto de te imaginar bem velhinha lembrando do seu pai gagá.
Não sei se já teremos te contado, mas você demorou três anos para dormir uma noite inteira. Foi surreal, sério, mas eu adorava te pegar para o tal “forrozinho da madrugada”.
Deixa eu te explicar... Sabe aquela canção do Bicho de Pé, “iô iô iô iô iô me encantei por teu olhar”, você era fascinada por ela. Toda vez que precisava te ninar, eu corria para a sala com você no colo, dava play no celular e começava a te girar com os lábios grudadinhos em sua testa.
Assim, você se acalmava e dormia... Alguns frevos também funcionavam, na segunda repetição você já caia no sono, mas ainda assim eu deixava rolar mais umas quatro. Era como se todo o universo parasse para ver a nossa dança: éramos o centro de tudo, e te ninar no forró foi meu maior vício desses primeiros anos.
Falando em “encantar por seu olhar”, você sabe, escrevi um livro só para falar dele e da lua que enxergava dentro. Seus olhos, filha, sempre foram dois faróis a iluminar os escurinhos do mundo. Sinto medo de não deixar um mundo bom para você continuar sua jornada. Daqui dos seus 7 anos, o que mais falamos e tememos é isso: mudança climática, o planeta revoltado, III Guerra Mundial, uma guerra nuclear... Estará você ainda muito preocupada com isso?
Receio que sim e, se sim, ao menos a guerra nuclear é sinal de que não a tivemos, não é mesmo? Aquário com ascendente em Aquário, pode? Nem sabia que podia.
Sua primeira palavra, por volta de sete meses, foi “batata”. Quando a disse, pensei “essa é minha filha!”... Mas “papai” foi praticamente a sua última, depois de “ornitorrinco” e “dromedário”. Por que fez isso comigo? Eu sei, pra me “trolar”, não é mesmo?, como gosta de dizer hoje em dia... Ainda utilizarão essa palavra em 2038? Quantas mais terão entrado em nosso dicionário?
Neste exato instante, você começou a treinar ginástica rítmica no ginásio da cidade. E é tão impressionante ver o quanto seus movimentos são lindos... Talvez meus olhos de pai me deixam um tanto míope, mas imagino que em seus 21 anos o Esporte tenha sido para você uma grande companhia. Espero que a Arte também...
Filha, ah minha filha, você foi tudo para mim desde que descobri que era um caroço de ervilha pairando na barriga da mamãe.
Vou te contar um segredo que talvez não saiba. Durante as 40 semanas em que esteve flutuando a tevê não foi ligada aqui em casa. Foram histórias, massagens, canções sobre a barriga... Era como se estivéssemos em suspenso, à sua espera, num outro tempo que costumamos chamar de “eternidade”.
Eternidade... Deparei-me com ela diariamente em seu sorriso. Foram 7 anos e 40 semanas de eternidade até aqui. Mas tenho medo, muito medo.
E nem é sobre isso, ignore... Deixemos o medo ao depois, pois com os meus 56 anos aí no futuro, tudo o que mais quero é curtir essa eternidade ao seu lado e dos meus netos! Tá, ok, você não é obrigada a me dar netos, o que seria um sonho dentro do grande sonho.
Espero que a onda neofascista, na qual remergulhamos fundo aqui nesta década, tenha se afastado completamente do seu mar. Fico imaginando também o quanto a tecnologia estará cabalmente presente em sua vida, e lá vem de novo a palavra “medo”.
Saiba que tudo o que fiz até aqui, e provavelmente nos próximos 14 anos que te encontrará aí, foi lutar contra esse medo de não ser o pai que você precisa. O que importa o pai que eu quero ser nesse caso, não é mesmo? Se não o fui, perdão, minha filha.
Em sete anos você aprendeu a nadar sozinha e concorda invejavelmente todos os plurais desde muito cedo. Pula como uma verdadeira canguru, é destemida e brava, vive a nos dar lições de moral até... Terá tido outro irmão ou irmã? Amora e Marx, seus irmãos caninos, talvez não estejam mais com você aí, e isso me contrai o coração. É, filha, não é fácil viver com tantos medos assim, mas teria a vida alguma graça sem eles?
Feliz primeiro e terceiro septênio.
Com amor, eterno amor.
Papai
(Fev/2024)
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'Cartas para Ontem' , no Cotia e Cia