Wil Delarte: Será um 7 de setembro flopado por todos, amargo e doloroso como nossa História
Exército brasileiro. Foto: Agência Brasil |
Por Wil Delarte*
Sim, chegou a hora da nossa coluna falar mais explicitamente dela: das nossas Forças Armadas. E por onde começar? Sinto que não há como a não ser pelo início de tudo, pelo “primeiro golpe”, aquele que destituiu nossa monarquia e o imperador Dom Pedro II do trono.
O golpe militar, liderado por Marechal Deodoro da Fonseca em 1889, que hoje é lembrado mais pelo título de “marechal” (quase como que um libertador da nação) do que pela simples alcunha de “golpista”, deu início à chamada República Velha, nossa primeira república.
Não, não adentrarei nessa seara espinhosa da semântica da palavra “golpe”, mas é bom frisar a nossa gênese e afinidade com golpes. Há muitos historiadores que, inclusive, afirmam que nossa Independência não passou de um golpe de Dom Pedro I e, não, não há nada de luta e conquistas populares nesse enredo, tão pouco em outros nossos.
E talvez aí esteja uma peculiaridade bem brasileira: não temos uma história de revolução civil, de tomada de poder pelo povo, o que temos é uma sequência abismal de golpe em cima de golpes em nossa História, e a tomada de poder pelos mesmos ou por outros poderosos, ou mesmo pelos mesmos-outros poderosos, que nos empurram goela abaixo frágeis símbolos patriotas, falsos heróis, passagens farsescas, e “forçadas de barra” como a substituição da palavra “golpe” por “revolução democrática” em 64, já pulando para outro golpe.
Tomo a liberdade, então, de saltar mais um pouco e ir direto para o que interessa, 2023, no “pós-golpeachment” de 2016, pós-pandemia da covid 19, e pós-necropolítica do governo militar de Bolsonaro. Sim, foram mais de 6 mil cargos dado a militares pelo antigo governo, sendo que o alto escalão superou até o período de ditadura militar, e as marcas dos militares e do militarismo mancham com nitidez a gasta parede da nossa democracia.
Bolsonaro fez valer a máxima de que “quem anda com porcos amanhece sujo de lama”. Não sei se essa máxima existe mesmo, mas cabe bem aqui. Não há plausibilidade possível que explique o porquê de parte das nossas Forças Armadas ter caído no discurso bolsonarista e, como cachorros que abanam o rabo, subjugarem-se a um capitão rancoroso que, após sua expulsão por terrorismo, parece querer diminuir todo o Exército ao seu tamanho.
Agora ele está nu. Nosso exército está nu.
Ele, que acredita ser nosso “poder moderador”; ele, que até hoje crê num bicho papão chamado “comunismo” e que estaria disposto a comer nossas criancinhas.
Bolsonaro deixou nosso Exército nu.
É como se estivéssemos olhando para uma chapa de raio x. Na chapa vê-se nitidamente a aversão aos pobres dentro de uma instituição que sempre lutou para manter seus privilégios financeiros, de Previdência, educacionais e que, por isso, sempre se enxergaram como uma casta (ou elite) à parte no país, ou os mais “técnicos e gabaritados” da nação.
Ao longo das décadas nosso Exército foi nutrindo desprezo pela Política e pelos políticos em geral, sentimento que foi de encontro à Lava-jato e ao caldo indigesto de 2018, muito bem temperado com pitadas de milicianismo e neopentecostalismo. Muitos “ismos”, né? Mas podemos ficar com um pior: fascismo. Triste, mas não há como não perceber a fascistização crescente do nosso Exército desde o golpe de 64.
Agora os reis estão nus, e dá até para brincar de enumerar algumas falácias plenamente desnudadas:
1- A falácia do “poder moderador” como prerrogativa do Exército
Não, o exército não é o poder moderador da nossa democracia, tão pouco é um poder em si; é uma instituição de estado (não de governo) e sua função é garantir o estado democrático de direito (e não subvertê-lo). A ideia de que ele poderia ser a palavra final diante de uma crise institucional vem de uma interpretação capiciosa do artigo 142 da Constituição, que o bolsonarismo tem como uma de suas mais preferidas “fake-news”. O ministro Fux, aliás, em resposta ao próprio Bolsonaro esclareceu por liminar, já em 2020, a interpretação desse artigo.
2- A falácia da alta performance e tecnicidade do Exército Brasileiro
Como já dito, foram mais de 6 mil cargos dados a militares no antigo governo, e a incapacidade de gestão e incríveis “bolas-foras técnicas” se agrupam em fila na capivara desses quatro anos. Contudo, vou ficar com a minha preferida, a do o ex-ministro da saúde Pazuello (que assumidamente não sabia o que era o SUS) mas, por sua vez, era especialista em Logística, e, usando-se de toda sua especialidade, enviou vacinas que eram para o Amazonas ao Amapá.
3- A falácia da incorruptibilidade
Essa é cristalina, e sabemos que o período de ditadura militar no país foi um dos mais corruptos da nossa história, porém, com censura, controle das mídias e da Imprensa, autoritarismo e uso da violência, foi fácil “vender” a versão de probidade e “caráter inviolável dos milicos”. No governo Bolsonaro e caso das joias, como vimos, até almirante entrou no bolo, trazendo joias milionárias das arábias estranhamente “muquiadas”, como diriam na quebrada.
4- A falácia da proteção contra um inimigo externo terrível
Essa falácia é antiga, e foi usada como a principal justificativa do golpe de 64, ainda que todos os historiadores digam que não, não havia qualquer condição de haver uma revolução comunista no Brasil naquela década de 60, e muito menos hoje, mais de 30 anos após a queda do muro de Berlin e do fim da União Soviética.
Amparados pelos discursos do guru Olavo de Carvalho (negacionista da pandemia e morto pela covid 19, diga-se), se perguntarmos para um bolsonarista raiz, ele certamente falará de um tal “marxismo cultural”, fruto de um “globalismo” da esquerda mundial que pretende implantar o comunismo por meio de inserção de valores na cultura. Esse é o bicho papão comunista que a alucinada extrema direita implanta na cabeça dos desavisados hoje em dia, um comunismo recheado de satanismo, gayzismo, abortismo e pedofilia. Pois é. Que nível, em Exército Brasileiro?
5- A falácia do patriotismo
“I love you”, disse Bolsonaro, meio estabanado, ao Trump, que mal entendeu a frase, num dia qualquer desses quatro anos de governo e submissão... Essa cena emblemática, que culminou numa overdose de memes com Bolsonaro batendo continência até para alface americano, nos remete diretamente ao arquétipo dos famosos “lambe-botas”, instaurado no Exército em forma de hierarquia e em tudo o que envolve a cultura do militarismo e seus adeptos no país. Esse amor destrambelhado a tudo que vem do sul dos Estados Unidos estava lá no golpe de 64, esteve cá no lava-jatismo, e está por aí, cantando hino para pneu hoje em dia. Nossas Forças Armadas tem um “ódio estrutural” por seu povo e veneração ao império americano, poderia dizer se não fosse tão forte essa afirmação. Por hora, continuemos a usar a palavra “desprezo”.
6- A falácia da proteção às fronteiras e aos indígenas
A ideia protecionista que Marechal Rondon, “o grande expansionista amazônico e protetor dos indígenas”, deixou como legado ao Exército no nosso imaginário está cada vez mais frágil no confronto com a realidade. O caso do genocídio do povo yanomami na pandemia revelou o descaso total do General Pazuello (na forma de Ministro da Saúde) com nossos povos originários, enquanto o governo militar de Bolsonaro tentava passar a boiada dos madeireiros ilegais, do garimpo ilegal, da tomada de terras indígenas, do sucateamento do Ibama, etc, etc, etc. E etc.
Recentemente, nesse mês de agosto, uma pesquisa da Genial/Quest trouxe como está a confiança do brasileiro nas Forças Armadas, revelando que o índice dos que confiam muito passou de 44% para 33%.
Inicialmente, a percepção da crítica jornalística era a de que os recentes casos revelados de corrupção envolvendo as Forças Armadas teriam provocado essa queda, porém, uma lupa revelou o mais trágico, a queda maior da confiança foi entre os bolsonaristas que sonhavam com o golpe e culpam o Exército Brasileiro pelo não-golpe de 8 de janeiro, com alguma razão.
Em suma, nossas Forças Armadas se veem neste momento odiadas pelos golpistas, que as enxergam como “frouxas e traidoras da pátria”, e cada vez mais com a desconfiança da parte democrata, liberal e progressista do nosso povo, que também as enxergam como traidoras da pátria. Pois é, nosso Exército vai de mal a pior e está completamente nu, com as partes íntimas todas aí, expostas.
Um Exército amedrontado nos bastidores... Um Exército envergonhado na CPI... Um Exército negociando panos quentes e alguns “bois de piranha” para o caldo da História onde pretendem, como sempre, sair ilesos; e talvez, neste exato momento, seja nossa única oportunidade concreta, desde 1889, de finalmente começarmos a domar essa fera com ânsia inesgotável de poder, de retirar privilégios infundados, eliminar da Constituição (por que, não?) a tal Justiça Militar, e pensarmos uma nova formação civil aos nossos policiais, cabos, soldados, etc, fundada no humanismo, na civilidade cidadã e na democracia, sem fantasmas ilusórios nos livros, sem fatos falseados, e, sobretudo, com verdadeiros valores patrióticos.
Não para ianques, não para abastados empresários brancos e oligarcas, e etc - Forças Armadas para o povo brasileiro! É disso que precisamos.
Temos, agora, a chegada das comemorações do 7 de setembro, tão politizadas nos últimos anos, e tão maltratadas. Aquilo que deveria ser somente uma festa cívica, sempre fora tomada pelo Exército e acabou se tornando bandeira político-ideológica. A missão do novo governo passa a ser então a de “normalizar” a festa, torná-la uma celebração democrática. “Civilizá-la” seria um termo melhor.
Será um 7 de setembro flopado por todos, amargo e doloroso como nossa História.
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'