Wil Delarte: “Não dá pra dormir sossegado com esse ronco no ouvido”
Por Wil Delarte*
Na manhã de sexta-feira (14), vindo de carro ao trabalho, ouvindo no talo um show de João Bosco, eu me despedacei.
No auge da empolgação e cantoria, como é comum quando estou só eu e a música, uma represa foi rachada nos assombrosos versos de Aldir Blanc: “a fome tem que ter raiva pra interromper”.
Na letra, absurdamente genial, a cuíca como arauto da fome, com sua barriga vazia que aspira e solta um vento agudo, anuncia e performatiza a raiva e a fome, que conclui-se, “é coisa dos homi”.
Um rio doloroso despencou dos meus olhos enquanto eu cantava ainda mais alto. Mas o que estaria acontecendo realmente? A pergunta que me fiz mentalmente transportou-me, no meio da canção, para uma cena da infância, guardada até então num escombro bem cuidado da memória.
Nela, eu reclamava pra Mãe que estava com dor de barriga, não conseguia mais comer aquela sopa de fubá sem nada.
Em dias mais gordos, um pé de galinha recheava a sopa de água, sal e fubá, juntamente com a couve. A couve secara no quintal e galinhas também já não mais cacarejavam por ali. Nem dinheiro, nem nada. Às vezes, coxinhas de rolinhas, caçadas no estilingue, faziam a vez da mistura. Cheguei a comer tico-tico, e disso nunca me esqueci, pois era uma dó que só, achava lindo os tico-ticos.
Mas não era dor de barriga, era fome.
Em algum momento, por esses piores dias, eu cheguei a falar pra Mãe que trabalharia muito pra termos sempre o que comer. E assim o fiz, desde os 12 anos, e há 30 sigo trabalhando muito, e tudo que, porventura conquistei não foi propriamente fruto do mérito ou da inspiração, foi fruto da raiva. Da raiva da fome.
E foi aí que eu entendi, pela primeira vez, esse verso em sua completude: “a fome tem que ter raiva pra interromper”... E as lágrimas, o arrebatamento em cantoria, eram frutos de muitas emoções misturadas, entre elas, a do torpor que a arte profunda provoca em nós e, provavelmente, só a música brasileira atinge comumente com a combinação entre música e poesia.
Só no Brasil, hoje, estima-se que são mais de 12 milhões que passam fome, sendo que 70 milhões de brasileiros tem alguma insegurança alimentar. Não dá pra dormir sossegado com esse ronco no ouvido.
Percebi que muito do que tenho feito e escrito na vida vem dessa raiva, sobretudo meu novo livro, que está pra chegar, é todo fruto dessa raiva. E também fruto do amor: amor pela justiça social e amor pelos “homi”, que com sua raiva e fome, faz coisas belas e terríveis.
Um brinde ao nosso eterno Aldir Blanc, maravilhoso compositor que a pandemia nos levou no barco dos 700 mil.
Eu sigo cá, rindo e chorando. Com raiva. Com muita raiva.
Êpa Babá.
*De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É parceiro e colunista do Cotia e Cia