Aporofobia, a ‘síndrome de Caco Antíbes’ e seus efeitos na sociedade

"Não é preciso lançar fogo em mendigos para ser um aporofóbico, às vezes nossa aversão a vulneráveis é muito mais sutil". Leia o artigo na Coluna 'O Olho do Furacão', de Wil Delarte

Imagem ilustrativa. Crédito: Câmara Municipal de Curitiba 


O Olho do Furacão #9: Em 2017 uma palavra foi eleita a palavra do ano pela “Fundación del Español Urgente” (Fundéu BBVA), sendo usada em diversos artigos e livros: aporofobia.

Você sabe o que significa essa palavra estranha e que cada vez mais entra em nosso vocabulário?

A aporofobia é o termo criado pela filósofa espanhola Adela Cortina para conceituar o horror, medo ou rejeição ao pobre e marginalizados em geral. A palavra deriva-se do grego “á-poros” (sem recursos ou pobres) e "fobos" (medo). Em suma, é a patologia social sofrida por aquela personagem caricata do ator Miguel Falabella que tinha prazer em expressar seu bordão “Tenho horror a pobre!”.

Segundo Adela, é uma fobia contra o pobre, que leva a rechaçar pessoas, raças e etnias que habitualmente não têm recursos e, portanto, não podem oferecer nada, ou parece que não o podem.

Na série cômica “Sai de Baixo” da Rede Globo, exibida de 1996 a 2002, Caco Antibes representava uma classe média endividada e em decadência. Historicamente, essa classe é um limbo social, pois luta, simbolicamente, para não pertencer aos mais pobres e, ao mesmo tempo, procura ostentar valores e símbolos da elite, na ilusão de a ela pertencer. Por encontrar ressonância no cotidiano nosso, essa personagem ganhou destaque, virou meme e até sinônimo de aporofobia no Brasil.

Mas não é só a classe média que tem “horror ao pobre”, boa parte da elite econômica também, e como todo preconceito que se estrutura nas camadas da vida social, o pobre também acaba reproduzindo a mesma aversão contra os ainda mais pobres, assim como negros podem ser racistas, mulheres serem machistas, etc. A dimensão estrutural desses preconceitos deve sempre ser levada em conta.

Uma situação arquetípica de aporofobia, no melhor (ou pior) nível “Caco Antibes”, teve grande repercussão no governo Bolsonaro com a figura do então Ministro Paulo Guedes, que chegou a afirmar que o dólar mais alto era bom para todo mundo porque impedia domésticas de irem para Disney: “Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada”, em suas palavras. Só faltou mesmo a expressão “Um horror!”.

Caco Antíbes, personagem da série 'Sai de baixo', da Rede Globo. Foto: Reprodução


O MEDO E A ESTRUTURA DA APOROFOBIA

O medo é sempre fator fundamental à constituição de ideologias extremistas. Enquanto o nazi-fascismo precisa da xenofobia e do racismo para se constituir, a aporofobia é o principal gatilho do neoliberalismo, a ideologia pós-liberal que leva ao extremo a liberdade de competição privada em detrimento da participação do Estado em nossas vidas, mesmo que, para isso, abdiquemos do mínimo necessário à dignidade humana quando pensamos em serviços públicos; o tal do “Estado Mínimo”, vocês já devem ter ouvido muito falar dele.

Ter medo da pobreza, nesse contexto, e não querer se enxergar nela, é o sentimento que impulsiona a aporofobia, tornando-a uma aversão, desprezo e ódio com aqueles que, segundo uma visão pessoal, foi atingido por ela.

Não por acaso, fascismo e neoliberalismo se enamoram tanto desde sempre e encontram em figuras como Paulo Guedes (admirador da ditadura neoliberal de Pinochet no Chile) uma cama quentinha para se deitar. Não por acaso, a ditadura que tentaram impor-nos aqui no destrambelhado “08 de janeiro”, tinha esse viés neoliberal tão amparado na combinação do discurso e lema “conservador nos costumes, liberal na economia”.

A aporofobia, por sua vez, se dissemina no dia a dia em todas as nossas relações, também pelas mídias, filmes e peças cômicas (como o “Sai de Baixo”), que reforçam estereótipos do pobre como “preguiçoso, drogado, alguém sem brio, sem sonho, sem vontade de ir à luta por natureza”, sendo esse “por natureza” algo como dado pelo Cosmos mesmo, tal um pássaro quando tem asas ou uma planta quando gera clorofila.

Nesse sentido, consagra-se a ideia de que o pobre procura a pobreza porque tem uma “alma pobre”, pertence a uma casta de humanos menores, destinados à pobreza por um dado biológico, por caráter, ou mesmo, como rege a ideologia da “meritocracia”, por opção, por falta de brio, ou mérito. Com isso, ignora-se todo o Sistema: a falta histórica de acessos a direitos básicos a uma camada social inteira, a trajetória individual de cada um, o racismo também estrutural, as origens geográficas, ou seja, sua realidade dialética-material, para cunhar um termo de Karl Marx.

LUTA CONTRA A APOROFOBIA

O padre e ativista Júlio Lancelloti, em São Paulo, tem se destacado nos últimos anos como um dos maiores porta-vozes da luta contra a aporofobia no país, com ações midiáticas que vão de retirada de grades em igreja a marteladas em blocos de paralelepípedos instaurados pela prefeitura sob viadutos da cidade e que cumprem o papel de impedir que ali desabrigados possam se alojar. 

Um projeto de Lei (PL 1.636/2022) do Senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) tramita pelo Congresso e pretende tornar crime de injúria o ato que envolva discriminação contra a pessoa em razão de sua condição de pobreza, além de qualificar o crime de homicídio e majorar o crime de lesão corporal praticado pela mesma razão.

O projeto está nesse momento com a Comissão de Direitos Humanos do Senado.

GENTE DIFERENCIADA

Muitos devem se lembrar do ocorrido em 2011 quando, revoltados com o eufemismo “gente diferenciada”, um grupo de quase mil pessoas protestaram com um “churrascão” em Higienópolis, bairro nobre da cidade de São Paulo cujos moradores se posicionaram contra uma linha de metrô que passaria pelo bairro e traria gente pobre para perto de suas casas. 

Como é estrutural e um valor compartilhado pelo capitalismo, e capilarizado na cultura em geral, qualquer um em qualquer classe social pode ser um aporofóbico, tornando-se quase uma regra entre os mais endinheirados.

Parece lógico, mas essa reflexão, a de que o pobre não o é por opção, é umas das mais difíceis de aceitar socialmente. Por outro lado, também, via de regra, não se percebe na sociedade outra coisa muito óbvia: os mais endinheirados, a elite em geral, o são por nascença, já herdam dos pais seus status e sua sorte com a certidão de nascimento.

Essa gente que “já herdou sua sorte” será a responsável na sociedade por julgar sentenças, fazer leis, empregar pessoas e decidir políticas públicas. Um aporofóbico em situação de poder tende a não enxergar a realidade da pobreza, a realidade material, e assim torna-se um dos principais arautos desse sistema perverso que precisa justificar a pobreza como questão de mérito e escolha, e não um resultado sistêmico, histórico, econômico, político e social.

O negro Machado de Assis, considerado por muitos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, nos ajuda a entender essas nuances da aporofobia ao retratar os perfis psicológicos de duas personagens em seus contos, o “capitão do mato” e o “cocheiro recém alforriado”.

Um cocheiro alforriado tendia a não se enxergar mais da “casta dos escravos”, e ao passar com a carruagem, onde levavam seus patrões/senhores, olhavam com desprezo os trabalhadores escravizados que viam pelas ruas. Da mesma forma, o Capitão do Mato, que era um negro contratado para capturar outros “negros fujões”, não se enxergava como um deles, seu status de aparente poder em relação a eles é o que determinava sua identidade, não mais o que o espelho lhe dizia.

Esse ser social, o do Capitão do Mato, está entranhado em nossa nossa sociedade e hoje em dia encarna a figura daquele policial negro que também já não enxerga mais etnia num negro criminoso quando esse é extremamente vulnerável na hierarquia do crime, um mero usuário de canabis, por exemplo, podendo facilmente o espancar até a morte.

A aporofobia explica esses dois fatos e personagens. O cocheiro alforriado se percebe acima do trabalhador escravo e, assim, mais próximo da classe do patrão do que da classe do negro, desaparecendo por completo a questão da etnia e cor da pele de ambos. É uma ilusão, obviamente. Da mesma forma, o policial negro se vê numa hierarquia social muito acima do negro criminoso vulnerável, e a aversão social aos miseráveis, combinada com o desejo perverso de confirmar tal posição de maior status na hierarquia social, faz com que aja com violência e crueldade, participando, inclusive, como um dos agentes do genocídio negro no país.

Não se engane, cada um de nós podemos ser mesmo, e a qualquer momento, um aporofóbico, e deixar essa síndrome, esse ódio, agir até inconscientemente em nós. Compreender que a aporofobia existe, e que é plantada por muitos agentes dentro de um sistema que se alimenta dela, é o primeiro passo para uma tomada de consciência social e política mais ampla, e um degrau a mais na escalada humanitária, inclusive.

Não é preciso lançar fogo em mendigos para se ser um aporofóbico, às vezes nossa aversão a vulneráveis é muito mais sutil. Eu sigo cá, desconfiado e atento para jamais me tornar um Caco Antibes. E você?



De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'



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