“Lembro que, quando moleque, piadas como “eu adoro negros, se pudesse tinha um amarrado no quintal de casa”, arrancava risos e era plenamente aceitável. Você consegue imaginar uma piada dessas ainda solta por aí, naturalmente, fluindo como água num rio?”
Vini Jr. e Leo Lins. Fotos: Reprodução. Arte: Cotia e Cia |
#OOlhodoFuracão (Por Wil Delarte)
No dia 21 de maio, durante a partida do campeonato espanhol (La Liga) entre Valência e Real Madri, mais uma vez nosso atleta Vini Jr foi vítima de xingamentos racistas na arquibancada, gerando, inclusive, coro de ódio na torcida do time anfitrião.
Esse fato horrendo e já recorrente com o jogador ganhou ainda mais repercussão no mundo todo por conta do diretor da La Liga, Javier Tebas que, ao invés de se comiserar com o jogador e tomar providências - algo que até então nunca tinha o feito de maneira efetiva - chamou a atenção do jogador e questionou se ele iria pedir desculpas à torcida do Valência por tê-la provocado. Ou seja, pediu ainda que a vítima se retratasse.
Soma-se a isso o fato de que a imprensa esportiva espanhola em esmagadora maioria não deu o destaque devido ao caso num primeiro momento, ou até mesmo o ignorou, fazendo coro ao depoimento de Javier Tebas.
O caso atual gerou e vem gerando muita indignação, reflexões, e motivou o Governo brasileiro, inclusive, a pedir respostas junto ao Governo espanhol no que se diz respeito às questões legais que o envolve. Cabe aqui ressaltar que a legislação espanhola é mais branda que a nossa em relação a esse tipo de crime.
Vou tomar esse caso, então, como ponto de partida para uma reflexão mais geral do “racismo estrutural” da nossa e de outras sociedades e, neste caso específico, do “racismo recreativo”, tão denunciado pelo jurista e professor Adilson Moreira, e que nos leva a outro caso recente e também emblemático, o do comediante Léo Lins que teve vídeo retirado do You Tube pela Justiça e que, ao meu ver, conversa diretamente com esse caso do Vini Jr.
Que nossa sociedade tem como base estrutural o racismo é algo que o Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, já vem há algum tempo nos alertando e demonstrando com estudos e pesquisas.
Para começarmos a desconstruir as engrenagens dessa estrutura racista, tão fortemente engendrada desde o período da escravidão, o primeiro passo seria enxergarmo-nos assim no espelho, aceitarmos sermos uma sociedade racista.
Esse primeiro passo civilizatório talvez tenha chegado ao nosso tempo como uma ideia. Como diria o escritor francês, Victor Hugo: “Nada é mais poderoso do que uma ideia que encontrou o seu tempo”. Será? Quero crer.
Desde o ocorrido em 2020 com o negro americano George Floyd, asfixiado pelo joelho de um policial no pescoço até a morte, e que deu mais brasa e revolta ao movimento internacional “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), sinto que a sociedade no geral começa a ficar menos tolerante com o racismo, e isso num momento em que ele atinge o seu apogeu. Sim, é no medo de não mais existir que qualquer patologia social se intensifica, como um grito de um animal que sabe que vai morrer logo ali.
Por isso, a extrema direita mundial praticamente tem como bandeira principal o racismo e a xenofobia. Por isso, o bolsonarismo, que conta negros por “arrobas”, também gritou e grita por aqui: porque sabem que o mundo caminha numa direção onde estão fadados a não mais existir.
O caminho é longo, claro, e, embora a resistência negra seja também grande e secular, ainda estou falando aqui do primeiro passo.
Indícios desse passo vemos no caso citado do comediante Léo Lins, reconhecido como um perseguidor de minorias. Parece que finalmente a Justiça entendeu que um crime inafiançável como o racismo não pode ser considerado entretenimento, e é aí justamente onde o conceito do “racismo recreativo” se compreende.
Segundo Adilson Moreira, em seu livro “Racismo Recreativo”, nós fazemos piadas sobre membros de grupos que nós desprezamos: negros, mulheres, pobres, nordestinos, gordos, etc, e isso está naturalizado na sociedade ao ponto de nem reconhecermos o crime quando imerso em universos recreativos, ou seja, em conversas de bar, churrasco em família, stand up comedy´s e, aqui inclui, o futebol.
Quase todos os juízes são brancos, e em sua maioria acreditam que essas piadas não passam de piadas, ainda afirma Adilson, ou seja, não passa de brincadeira e lazer. Encarar como “brincadeira” não deixa de ser a única estratégia possível da branquitude judicial que, com isso, consegue sobrepor o direito à liberdade de expressão sobre o direito pétreo da dignidade humana ou de um crime considerado hediondo, como o racismo.
Enquanto estrutura social e econômica da nossa sociedade, o racismo tal como compreende Silvio Almeida, faz com que negros naturalmente também possam ser racistas. Ter um amigo negro, uma esposa negra, não exime ninguém de ser racista, bem como mulheres podem reproduzir, e reproduzem, naturalmente o discurso machista.
Ressalta-se que o discurso de posicionamento da branquitude, reservando aos negros um lugar hierarquicamente subalterno na sociedade, gerou no Brasil 388 anos de escravidão, o mais longevo de qualquer país escravagista da História.
O futebol, por sua vez, traz historicamente em si dois aspectos sociais muito fortes e, a princípio, excludentes, mas ambos, a meu ver, são estruturas nas quais o racismo pode se manifestar em chão frutífero. Um deles é o “ambiente de guerra e violência”, que vem desde o culto das arenas romanas com seus digladiadores agradavelmente mortais.
Já ali, nas arenas romanas, tínhamos também a dimensão da violência enquanto entretenimento, ou seja, uma “violência recreativa”. A tourada e os rodeios também passam por isso. O futebol, antes de ser futebol na Inglaterra, tem um histórico e uma gênese bélica bastante peculiar, vide os jogos militares da China por volta de 3000 a.C onde cabeças de inimigos serviam como bola.
No futebol moderno, que é o que nos interessa, a princípio temos uma amenização da violência, mas em verdade ela é apenas controlada com regras e leis dentro de um jogo, o que não coíbe práticas violentas como carrinhos por trás, mordidas em orelhas, pernas fraturadas, etc, tudo, claro, ao deleite da torcida que tem o outro como inimigo e espera sua eliminação simbólica, ou mesmo física, basta ver os inúmeros casos de assassinatos e brigas de torcidas que terminaram em grandes tragédias pelo mundo.
Não nego nosso lado animal, mas algumas coisas elegemos em determinado momento histórico como não mais aceitáveis. O racismo, a lgbt+fobia e o machismo estão indo por esse caminho. Os reacionários buscarão argumentos até a morte para não deixarem de ser escrotos, porque uma autodesconstrução é sempre dolorosa. E quem quer verdadeiramente encarar suas dores e sombras?
Mas o futebol é em essência, também, recreativo. Se num ambiente de guerra, tudo pode para eliminar o outro, no ambiente da recreação tudo é relativizado. Isso ficou caracterizado quando repórteres brasileiros, como Felipe Kieling, questionou espanhóis comuns nas ruas sobre o ocorrido com Vini Jr. A esmagadora resposta foi: não se trata de racismo, trata-se de rixa de torcidas.
Ou seja, no ambiente da rixa e da rivalidade, tudo pode. Como também dentro da piada, tudo pode, diria Léo Lins e seus defensores, também comediantes, Fabio Porchat e Antonio Tabet que, num primeiro momento, saíram em defesa cega do amigo, reivindicando a tal “liberdade de expressão”, essa que foi e é tão deturpada pelos reacionários.
Cabe aqui um parêntese histórico. A comédia, desde o seu surgimento e auge enquanto gênero no teatro grego por volta de 500 a.C, foi um instrumento importantíssimo e respeitado pela sociedade, o único momento em que poderosos, divindades e semi-divindades podiam ser rebaixadas comicamente e, com isso, criticados pelo artista e, por tabela, pelo próprio povo, vide as inúmeras comédias de Aristófanes que chegaram até nós.
Esse instrumento de crítica aos poderosos é o que parece escapar a alguns humoristas que preferem continuar no mais fácil, na ridicularização de minorias e vulneráveis, deitando e rolando em estereótipos prontos, afirmando-os, inclusive.
Crescemos com Os Trapalhões reforçando esse tipo de comédia, com Didi Mocó humilhando Mussum o tempo todo pelo fato dele ser negro. Lembram-se? Sim, nada surge do nada, tudo na sociedade são movimentos e forças históricas. A arte se alimenta da vida, a comédia também... Mas tudo na sociedade muda, não é mesmo? Tudo também evolui e pode ser aprimorado.
É importante ressaltar que, sim, a liberdade de expressão existe e é importante que comediantes a tenham como armadura. A coisa muda de figura quando cai num crime, na Constituição e no direito penal. Esse limite pode ser até motivação criativa ao comediante e, afinal, quem não gosta de uma boa comédia inteligente? Comédia burra também tem todo o direito de existir, basta não cair em crimes previstos em Lei. Fica simples entender colocado dessa maneira.
Como repercussão do caso Vini Jr, outro caso assombroso ocorreu com o discurso do senador Magno Malta, figura carimbada do bolsonarismo que, ao falar do ocorrido, lembrou a todos nós da hipocrisia de não estarmos defendendo o macaco, que segundo ele, são animais espertos, valentes e cheios de atributos positivos. É isso mesmo que você entendeu, o macaco é que deveria se ofender com a associação ao Vini Jr, em suas palavras, essas que a Procuradoria Geral da União já está analisando. Cassar esse senador será um ato de saúde, um passo civilizatório, e demonstrará que estamos, sim, nesses primeiros passos efetivos. Quero crer.
O Futebol sempre foi a arena do "tudo é possível", ali, na arquibancada e protegido pela impessoalidade de uma suposta "multidão", cada um pode expressar o que se é, e esse "se é" é geralmente um lugar bem perverso, que fora da arena alguns coíbem em prol do contrato social e de alguma civilidade. A questão é: vamos tolerar machismo, racismo e lgbt+fobia até quando? Até quando é possível a sociedade ir em uma direção e o universo do futebol em outra?
Recentemente, o ex-jogador do Corinthians e comentarista, Neto, vem se posicionando no sentido de que o ato de ter cuspido no árbitro José Aparecido de Oliveira, passagem mais inglória de sua carreira, foi, sim, um ato racista. Na época ele não compreendia assim, mas ao verificar que possivelmente se o árbitro fosse branco a cusparada não teria ocorrido, fez com que o craque repensasse o caso.
Temos aqui um exemplo claro do que Silvio Almeida chama então de “racismo estrutural”. Perceba, é tão estrutural que o racista nem se dá conta de que o é, ou leva muitos anos até se perceber como, quando consegue. O Futebol é racista porque a sociedade é. Então, usemos o futebol como espelho para nossa autoanálise social. Isso é saúde, isso é civilizatório.
Note: existe em nossa sociedade o que podemos chamar de “agentes do silenciamento do racismo”. É algo muitas vezes sutil, mas esses “agentes” meio que tentam calar a voz de quem desafia o racismo estrutural. O presidente da La Liga foi um agente desses, o principal nesse fato.
Artistas, jornalistas, também costumam ser, ainda que de uma forma não tão consciente. Patrões em geral, e toda a branquitude em estado de poder, são rotineira e sistematicamente agentes de silenciamento do racismo. Mas algo no mundo está mudando.
Vini Jr, de forma exemplar, está encarando e afrontando os racistas. Cobrando de quem mais pode também pressionar nessa questão: os patrocinadores da La Liga. Qual marca em 2023 quer ter seu nome associado ao racismo? É essa mudança que estou falando, uma mudança que começa também a vir de cima para baixo, permeando orçamentos, contratos e leis.
O banco Santander entendeu isso e foi a primeira grande marca a dizer que não mais renovará contrato com a La Liga na próxima temporada. Quando algo desse tipo acontece, é sintomático, significa que as reivindicações finalmente começam a chegar a quem tem o poder de efetivamente tomar as ações, como se o racismo estrutural encontrasse um ponto de desconstrução no teto, muito forte, e começasse a tombá-lo, a rachar as estruturas. Não sejamos românticos: quem tem o poder e vai ditar isso, é o capital, são os poderosos. Talvez, como disse, tenha chegado esse tempo.
A classe média e a elite como um todo se comovem quando o racismo ocorre com pessoas de dentro da sua classe monetária, e isso tem que ser usado a favor da luta contra o racismo. Nossa luta diária e função enquanto mídia é servir de espelho para o auto-envergonhamento da sociedade, o racista precisa se enxergar racista e sentir na alma uma culpa moral. Sem isso, qualquer medida está fadada a ser paliativa.
Lembro que, quando moleque, piadas como “eu adoro negros, se pudesse tinha um amarrado no quintal de casa”, arrancava risos e era plenamente aceitável. Você consegue imaginar uma piada dessas ainda solta por aí, naturalmente, fluindo como água num rio?
A civilização começa a colocar pedras nesse fluxo. O quanto eu, você, acabamos sendo no dia a dia agentes do silenciamento do racismo? O caso Vini Jr chama-nos a atenção e grita: não há mais lugar para racistas no mundo.
Não, não há.
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'