“Entender como ele opera ajuda a não cairmos mais em sua falácia, em sua propaganda invertida ou na lábia de seus ídolos forjados”
Campo de concentração de Auschwitz. Foto: Reprodução |
Por Wil Delarte
No último podcast Bom Papo & Cia que participei, uma fala minha um tanto quanto emocionada gerou reações importantes e, inclusive, esse corte AQUI. Porém, na ocasião não pude me estender nem explicar melhor o que é, como funciona, e o porquê de eu estar enfaticamente definindo como “Fascismo” o que vivemos nos últimos anos por aqui.
Pois bem, a nova onda avassaladora da extrema direita no mundo, que começou bem antes e principalmente nos Estados Unidos com o “trumpismo”, mas chegou em diversos países, para não dizer todos em alguma medida, usurpou nosso poder e tentou saquear à força nossa Democracia.
Não tenho qualquer receio de afirmar que, aos modos brasileiros e no contexto do século XXI, o fascismo, ou neofascismo, como queiram, realizou-se e vem se realizando cada vez mais declaradamente, e só não se constituiu como poder político centralizador porque o golpe destrambelhado de 08 de janeiro, com anuência ou conivência de alguns muitos militares, saiu pela culatra.
Em muitos aspectos, também não é exagero de expressão chamá-lo de “neo-nazifascismo”, dado a peculiaridade adicional desse fascismo querer instituir certa “higienização” da sociedade em prol de uma suposta casta limpa, pura, cristã, imaculada e cristalinamente branca.
Para ajudar a entender como o fascismo se constitui historicamente e estrategicamente se organiza, vou utilizar-me do famoso livro do filósofo e pesquisador americano Jason Stanley, intitulado "Como Funciona o Fascismo", onde é apontado dez grandes pilares recorrentes do fascismo e que, em última instância, o constitui. Observarão então, comigo, o quanto são esclarecedores os exemplos que didaticamente podem nos ajudar a entender essa força reacionária e secular nas sociedades humanas, assim como operam hoje no Brasil.
Vamos a eles, os pilares do fascismo:
1- PASSADO MÍTICO
Todo fascismo se fundamenta num suposto passado mítico, totalmente idealizado, momento em que supostamente a vida era melhor, mais ordeira, e a “moral e o respeito” imperavam. Não raro, esse passado mítico começa já no Paraíso bíblico.
No Brasil, ele está atrelado ou a época monárquica, onde a saudade de um poder moderador sobre todos os outros é o motor dessa pulsão, ou, principalmente, ao golpe militar de 64, o passado mítico mais recorrente do bolsonarismo, como sabemos. Em resumo, nas palavras do próprio autor, “o fascismo sempre deseja voltar a um passado mítico”. O Objetivo é fazer as pessoas e um grupo dominante acreditarem que “perderam algo”, uma sensação de perda de um passado que nunca existiu.
2 - PROPAGANDA
A propaganda invertida é uma estratégia clara do fascismo, ou seja, nas palavras do autor, “fascistas acusam seus inimigos de serem o que eles mesmos são”. Esse padrão se repete em todos os modelos fascistas e nazistas, esses últimos, por exemplo, acusavam a imprensa alemã de mentir o tempo todo. Desacreditar a imprensa é crucial para o fascismo, já que ela, a imprensa, é uma parte importante da Democracia que pretendem destruir.
Quando um juiz corrupto assume o poder com a bandeira da anticorrupção, temos essa inversão operando. Nos ministérios do antigo governo isso foi sistematicamente recorrente, basta lembrar alguns exemplos emblemáticos, como: Ministério do Meio Ambiente propagando a notícia de que ONG´s poderiam ser responsáveis pelo desmatamento e se aliando ao setor mais “ogro do agro”, ao garimpo ilegal, etc; uma Ministra da Mulher nitidamente machista; um presidente da Fundação Cultural Palmares desacreditando o racismo e a própria escravidão; isso tudo, só para ficarmos em poucos exemplos.
3 - ANTI-INTELECTUALISMO
Esse pilar é de extrema importância ao fascismo que precisa desestimular a reflexão, o livre pensamento crítico e o conhecimento factual da História. Universidades precisam ser atacadas (“antro de balbúrdias e drogas”) e a Ciência desacreditada (ataque às vacinas, ao darwinismo, à forma oval do planeta, e por aí vai...). O ataque é sistemático e ininterrupto a qualquer versão midiática ou institucional que vá contra a visão fascista de mundo.
4 - IRREALIDADE
Nesse pilar do fascismo, a estratégia é criar constantemente boatos e versões conspiratórias da realidade, até chegar-se ao ponto dessas se confundirem com as narrativas tidas como oficiais ou mais plausíveis da realidade. Nas palavras do autor, “as teorias conspiratórias têm uma estrutura própria: primeiro você diz que a mídia pertence a forças obscuras e a prova disso é de que a mídia nunca revela que pertence a essas forças obscuras”. Os nazistas fizeram isso acusando os judeus de serem os donos das mídias e como as mídias não revelavam isso, isso era a prova, ou seja, a Irrealidade precisa também da Propaganda Invertida, o segundo pilar, para se estabelecer cognitivamente nas pessoas que, paulatinamente, vão vivendo num mundo paralelo.
5 - HIERARQUIA
Nesse pilar o fascismo estabelece uma hierarquia rígida e valorativa acerca da ordem social, reservando status de superioridade a classes sociais (ricos e classe média-alta em relação aos pobres), a gêneros (homens em relação às mulheres), a grupo sociais (militares em relação a civis), a grupos econômicos (empresários em relação aos trabalhadores), a grupos étnicos (brancos em relação aos negros), etc. Nem é preciso falar que a cultura LGBTQIA+ não tem espaço qualquer numa sociedade fascista. Nas palavras do autor, “a Hierarquia estabelece a existência de um grupo dominante”. Utilizando-se, então, dos outros pilares, o fascismo opera para justificar sistematicamente a legitimidade dessa Hierarquia.
6 - VITIMIZAÇÃO
Em outro processo de inversão, aqui o fascista acredita (ou precisa acreditar) que é vítima da sociedade, que quando um negro, por exemplo, entra por cota na universidade, ele está roubando um lugar que deveria ser dele, que quando um idoso tem direitos específicos, também está roubando os deles, quando uma mulher atinge um cargo elevado, está se usando de subterfúgios de sedução dos homens e roubando o lugar dele, e por aí vai.
Ou seja, o fascismo se coloca como vítima do Feminismo, do Movimento Negro, ou de qualquer movimento de minorias da sociedade. O autor afirma aqui que o fascista se vê “vítima de uma igualdade invasiva”. Interessante pensar nesse termo, já que o pilar da Democracia é a busca pela igualdade e garantia de direitos às minorias, para que justamente um grupo que se ache superior ao outro não aniquile todos os demais. Isso demonstra, entre tantos outros motivos, o porquê do fascista odiar tanto a Democracia.
7 - LEI E ORDEM
Uma vez estabelecida e “justificada” a Hierarquia de um grupo dominante, o fascismo então, em nome da Lei e da Ordem, opera com violência e punição aos que se opõem a esse sistema. Nas palavras do autor, “o grupo discriminado é tido como criminoso e preguiçoso”.
Em última análise, dentro dessa Hierarquia humana constituída, as minorias figuram como “não-humanos”, é por isso que, por exemplo, naturaliza-se o extermínio de negros e pobres no Brasil. Chacinas recorrentes não são vistas como um extermínio de minorias, nem noticiadas dessa forma, o que demonstra também o quanto nossa mídia hegemônica, usurpada por grupos econômicos da elite, em alguma medida está historicamente contaminada por esse pilar fascista e por ideologias fascistóides, bem como essa própria elite que nos domina e dita os caminhos do país desde a remota invasão de 1500.
8 - TENSÃO SEXUAL
Nesse pilar, apropriando-se de tensões sexuais muito fortes na constituição psíquica do ser humano, como profundamente investigou Freud, o fascismo atribui ao “outro” a degeneração sexual, seja pela homossexualidade ou prática sexual que supõe contrária à “natureza moral do ser humano”, seja pelo medo do estupro ou da pedofilia.
Em resumo, o fascismo impõe ao progressismo da sociedade atributos de degeneração sexual que opera basicamente no gatilho do Medo. O fascista então precisa de um líder que proteja suas mulheres e crianças desses supostos degenerados. Uma figura como a ex-ministra Damares Alves, e suas falas, basta para exemplificar esse pilar. Bolsonaro e seu kit gay no Jornal Nacional, as fake news de “mamadeira de piroca” são exemplos também dessa paranoia que é um método fascista de manipulação de pulsões psicológicas.
9 - SODOMA E GOMORRA
Numa alusão aqui a uma referência bíblica para cidades “degeneradas”, esse pilar fascista estabelece geograficamente uma hierarquia entre povos, sendo que o ambiente rural é tido como genuinamente puro, e o urbano é tido como cheio de vícios ou de estrangeiros perigosos.
Uma vez estabelecido esse pilar, juntamente com a Hierarquia social fascista, torna-se legítimo a força do Estado pela polícia, por exemplo, ao adentrar uma comunidade pobre atirando, inclusive dentro de seus lares. Isso explica porque nos interiores do Brasil profundo e mais rural o bolsonarismo encontrou cama quentinha para se deitar.
O universo sertanejo foi e é vítima fácil do neofascismo principalmente pela execução desse pilar.
10 - ARBEIT MACHT FREI
O décimo pilar remete a uma frase alemã encontrada nos campos de concentração nazistas de Auschwitz, que significa “O Trabalho Liberta”. Com esse pilar o fascismo rotula seus opositores como “vadios e preguiçosos” e, com isso, legitima o trabalho forçoso, por exemplo.
Recentemente nessa mesma coluna eu falei sobre os casos de escravidão moderna em vinícolas gaúchas (RELEMBRE AQUI), casos como esses são exemplos da fascistização e nazificação da nossa sociedade.
O americano e o brasileiro comum podem dizer naturalmente que índios são ou foram preguiçosos, por exemplo, e com isso justificar seu extermínio ou não direito de viver entre nós, os civilizados. Judeus eram tidos como preguiçosos e para libertar o povo alemão dessa “preguiça”, justificou-se seu extermínio, a tortura e o trabalho escravo. Muitos dizem por aqui que baianos e/ou negros são preguiçosos. Vocês sabem onde isso vai desembocar.
Como percebemos, o fascismo opera assim, começa como uma ideia turva, um boato, uma conspiração, uma hierarquia, um preconceito, e termina num mundo paralelo, num genocídio de indígenas ou num campo de concentração. Terminam em ditaduras, totalitarismos e retrocessos humanitários e econômicos. A quem interessa o fascismo?
Entender como ele opera ajuda a não cairmos mais em sua falácia, em sua propaganda invertida ou na lábia de seus ídolos forjados. Que a Realidade se imponha sobre a irrealidade. Que o futuro se achegue, generoso, justo, igualitário e democrático. Que os verdadeiros mitos revelem e desabrochem nossa humanidade. Aos falsos, só o lixo da História. Ontem, hoje, e mais que nunca: Não passarão!
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'