O Olho do Furacão #5: Escravidão Moderna: da colonização às falas do vereador Sandro Fantinel

Wil Delarte: “Sim, Nabuco, a escravidão segue sendo estrutural em tudo o que fazemos, pensamos e agimos, presente no intestino de empresas privadas e também em políticas públicas. Sim, Caliigaris, o espectro do colonizador é e será ainda por muito tempo o alter-ego sombrio do país, cama onde a classe média empresarial branca se deita com carinho em seu sonho de Casa Grande. Um país que desesperadamente precisa de Divã e muita, muita aula de História”

Imagem ilustrativa. Foto: Sérgio Carvalho / MTE


Por Wil Delarte:

Após as tenebrosas cenas dos yanomamis e do garimpo ilegal em Roraima, relatadas em meu último artigo, o país se vê refletido, novamente em seu espelho carcomido, numa crise recém instaurada com vinícolas gaúchas, flagradas explorando trabalhadores, em especiais baianos, em situação análoga à escravidão.

Mas, antes de irmos ao caso, trago duas frases, como epígrafes para esse artigo, de dois grandes entendedores desse Brasil, psicologicamente profundo. Uma é do grande historiador do século XIX, poeta e diplomata, Joaquim Nabuco, em seu livro intitulado “Minha Formação:

"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil"

A outra frase é do italiano mais brasileiro que tivemos, emblemático escritor e psicanalista, que nos deixou recentemente em 2021, Contardo Caliigaris, em seu livro “Hello Brasil!”:

“No discurso de cada brasileiro, seja qual for a sua história ou a sua posição social, parecem falar o colonizador e o colono”

Então, vamos ao caso.

Mais de 200 trabalhadores foram resgatados pela PRF em estado degradante e análogo à escravidão na noite de 22 de fevereiro, como bem trouxe o portal do governo federal, sendo que até espancamentos, choques elétricos, tiros de bala de borracha e ataques com spray de pimenta eram utilizados

Uma empresa terceirizada por grandes vinícolas, como a Salton, era responsável por recrutar trabalhadores, principalmente baianos, e os mantinham em situação de completo desamparo sanitário e social, forçando endividamentos que os tornavam praticamente posse da empresa.

A “escravidão”, citada por Nabuco, e o “colonizador”, por Caliigaris, se juntam nesse parágrafo que é em si o espelho de um Brasil que saiu das profundezas de si mesmo, ganhou mais espaço e voz por quase uma década, e agora começa a surgir na claridade do dia, lutando ainda por algum lugar ao sol.

Pois bem. Não bastasse uma Associação que representa empresas envolvidas nesse caso alega faltar mão de obra por conta de “políticas assistencialistas”. Isso mesmo, como se um Bolsa Família, por exemplo, roubasse a mão de obra disponível e, sem ela, o que restou às empresas foi “ESCRAVIZAR O QUE ENCONTROU”.

Isso não foi dito nas caixas altas, mas nas entrelinhas essa é a única conclusão lógica e possível da nota publicada por essa associação, a saber, o CIC-BG (Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves).

Pois bem. Não bastasse, o excelentíssimo vereador bolsonarista de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, num discurso vomitante, digno das páginas mais esdrúxulas da História desse país, foi em defesa das vinícolas (“o colonizador”) e ao ataque dos baianos (“o colono escravizado”). Entre outras frases horrendas, temos pérolas do tipo:

“Agricultores, produtores, vou dar um conselho para vocês: não contratem mais aquela gente lá de cima (os baianos)”

“Todos que têm argentinos trabalhando hoje só batem palmas. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantém a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o patrão. Agora com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, era normal que fosse ter esse tipo de problema”

O Excelentíssimo das falas escrotas já foi expulso de seu partido, o Patriota. Sim, nem mais com o Patriota essa figura já dá match. E deverá ser cassado.

Sim, o tempo é outro, a onda já é outra, não há mais uma manada à vontade de gente reverberando o preconceito e tantas outras rajadas que a sombra do colonizador em nós, diria Calligaris, tanto espalhou nesses últimos anos.

Não é preciso dizer o quanto a Bahia e os baianos têm de grandiosos na história cultural desse país, também está muito claro o quanto de nazista uma frase que aponta para os “de lá de cima”, em oposição ao “nós”, tem.

Sim, Nabuco, a escravidão segue sendo estrutural em tudo o que fazemos, pensamos e agimos, presente no intestino de empresas privadas e também em políticas públicas. Sim, Caliigaris, o espectro do colonizador é e será ainda por muito tempo o alter-ego sombrio do país, cama onde a classe média empresarial branca se deita com carinho em seu sonho de Casa Grande. Um país que desesperadamente precisa de Divã e muita, muita aula de História.


De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'

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