Confira mais um texto da coluna do escritor Wil Delarte no Cotia e Cia
Foto: Ricardo Stuckert |
Por Wil Delarte
“Eles são muitos” [...] “Morreu metade do meu povo” [...] “Sem índio, vocês vão sofrer também, índio não vai morrer sozinho!”
As frases acima, proferidas pelo líder yanomami Davi Kopenawa (valor.globo.com, 29.01.23), são daquelas capazes de derrubar qualquer um que ainda tem um mínimo de empatia guardada no peito.
São frases que retratam o desespero de um povo largado à própria sorte, contra a ganância de garimpeiros ilegais, militares corruptos e todo um governo complacente. Ou poderíamos chamar de “genocida”?
Antes de responder a essa cabal pergunta, listarei aqui alguns fatos e acontecimentos ligados a essa crise humanitária que tanto tem nos chocado neste início de ano.
LIGAÇÃO DE BOLSONARO COM O GARIMPO
Abril de 1998, o ex-presidente Jair Bolsonaro faz a seguinte declaração na Câmara dos Deputados: “A Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”.
Em abril de 2017, no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, Bolsonaro diz que “se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. Essa fala ficou famosa quando, na sequência, ele associou o quilombola a um animal de porte grande, dizendo que no quilombo “o afro descente mais leve pesava sete arrobas”.
Segundo o The Intercept Brasil (matéria de dezembro de 2018), o pai de Bolsonaro foi garimpeiro no começo dos anos oitenta na Serra Pelada, o maior garimpo a céu aberto do mundo e que devastou, durante o ciclo do ouro, cento e quarenta e oito mil quilômetros quadrados de floresta no estado do Pará. Esse fato revela, em si, a ligação familiar e afetiva entre Jair Bolsonaro e o universo do garimpo.
Em 2020, Bolsonaro assinou o projeto de Lei 191/20, autorizando e incentivando o garimpo em terras indígenas.
Em outubro de 2021, Bolsonaro visitou em Roraima um garimpo ilegal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (isso mesmo, enquanto o povo yanomami morria, Bolsonaro visitava garimpo ilegal em terras indígenas em Roraima), defendendo a “legalização da atividade”. Essa “viagem”, segundo o portal Metrópoles, ainda custou R$ 163 mil de verba pública no cartão corporativo do Presidente.
Em janeiro de 2023 (matéria da Folha de São Paulo de 26.01.23), soubemos que, de acordo com relatórios da FUNAI de 2019, militares do exército foram comprados pelos garimpeiros (ou venderam-se, como queiram), recebendo pagamento em dinheiro vivo em ouro do próprio garimpo ilegal.
A paixão pelo garimpo, como vimos, é ancestral na vida de Bolsonaro. A relação de amor com os militares (ainda que ele tenha se tornado famoso por fazer terrorismo dentro de um quartel) também é latente. O caldo dessa crise humanitária em Roraima vem da combinação letal entre Garimpo ilegal + Militares corruptos + Governo complacente que, quando acionado, ou simplesmente ignorou a situação ou agiu a favor do garimpo ilegal, do desmatamento e, consequentemente, da morte de indígenas.
O mercúrio produzido pelo garimpo ilegal, como sabemos, contamina e mata os peixes, e, ao contaminar as águas dos rios, contamina também os indígenas e os próprios garimpeiros. Em combinação com o desmatamento, aumenta-se o surto de malária, doença que tanto vem aniquilando o povo yanomami, causando diarreias e potencializando a desnutrição.
De acordo com a Folha de São Paulo (reportagem de abril de 2022), o garimpo ilegal, por sua vez, também leva violência sexual à terra yanomami, no abuso de crianças e mulheres por troca de comida.
MEDICAMENTOS NEGADOS
Outro dado aterrador: a cloroquina, que jamais funcionou para o tratamento da covid -19, e teve produção elevada pelo exército (em 12 vezes entre set/20 e jan/21), e também serviu para fake news diária do governo (entregue até para Emas, vocês viram), foi negada para o tratamento da malária aos indígenas, justamente para a doença contra a qual ela serve, segundo matéria da Amazônia Real (21.07.2022).
A reportagem da Folha de São Paulo (30.11.2022) diante de uma operação da PF, afirmo, já em seu título, que “Desvio de medicamentos para yanomamis impacta 10 mil crianças” (isso mesmo, não foi falta só de cloroquina, até dipirona estavam negando).
FUNAI CONTRA OS INDÍGENAS
O Indigenista Bruno Pereira (assassinado com o jornalista Dom Phillips, caso mundialmente famoso) foi demitido da FUNAI em 2019 por denunciar o garimpo e a pesca ilegal. Aqui temos outro ponto trágico: a FUNAI, durante o governo Bolsonaro, foi aparelhada ideologicamente de tal forma que funcionava como uma espécie de braço do garimpo, do desmatamento e da pesca ilegal, contra os próprios indígenas que deveria proteger.
GENOCÍDIO
No dia 23 de janeiro, desse nosso já impressionante 2023, Flavio Dino, novo ministro da Justiça do governo Lula, pediu para a PF investigar genocídio e omissão de socorro ao povo yanomami.
Então, vamos lá, sobre o termo “genocídio”, o que podemos dizer?
Quando, na catástrofe de mais de 700 mil mortos pela pandemia da Covid 19, muitos atacavam o governo federal, chamando essas mortes todas de “genocídio”, especialistas do Direito e da Ciência Social nos alertavam que, tecnicamente, não se tratava desse crime, no máximo, seria uma sequência em série de homicídios isolados, o que não diminui a gravidade, claro, mas não se tratava de tentativa deliberada de extermínio (total ou parcial) de determinado povo ou etnia.
Então vamos à Lei 2889 de 1956, momento do pós II Guerra Mundial. Quando o mundo havia acabado de assistir à barbárie do extermínio do povo judeu pelos nazistas, Juscelino Kubitschek promulgou o que seria a tipificação do crime de genocídio no Brasil (com a anotação minha do checklist bolsonarista):
Artigo 6o
Crime de Genocídio
Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo; (OK - 570 crianças yanomamis morreram por causas de doenças evitáveis nos últimos 4 anos, estima-se. “Não estamos conseguindo contar os corpos”, foi a frase dolorosa de um profissional de saúde indígena, vocês viram)
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; (OK. Idem)
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; (Ok. Idem)
d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; (até o momento, esse item do checklist não foi preenchido)
e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo. (Ok. Lembram-se da ex-ministra bolsonarista Damares Alves, acusada de sequestrar uma indígena do Xingu, alegando “adoção”? Adoções forçadas assim, e ainda estimulada por um agente político, é indício de genocídio)
Por analogia, impor à força determinada cultura a determinado grupo étnico, também é genocídio desse grupo, bem sabem os portugueses e espanhóis que, quando da invasão das Américas, não só tentaram aculturar, mas dizimaram literalmente total ou boa parte dos povos originários daqui.
Mas, e então, agora que praticamente foram gabaritadas todas as alíneas do crime de genocídio, já podemos chamar finalmente, em alto e bom som, Bolsonaro e seu governo de GENOCIDAS? A pergunta é retórica, vocês perceberam, mas devemos fazê-la.
E não só: devemos GRITÁ-LA!
De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. É idealizador do canal cultural Universos para Elos e escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'