O Olho do Furacão#2 - Do hino para pneu à intervenção extraterrestre

"Como seria possível resgatar Tio Joca e Tia Neide de um universo totalmente paralelo?" Leia o artigo de Wil Delarte, colunista do Cotia e Cia

Foto: Ilustração / Twitter @wdelarte


Por Wil Delarte

Lembra quando o Tio Joca fazia seus churrascos aos domingos, ia toda a família, e Tia Neide sempre comparecia com aquele manjar, um bolo, aqueles doces maravilhosos? Como tio Joca era engraçado, não é mesmo? As piadas não eram tão boas, mas as imitações de veado, ah, eram inigualáveis, não é mesmo? Tia Neide ria baixinho, não tinha voz nem para rir alto a coitada, apenas colocava a mão na boca e balançava a cabeça como quem dizia “Esse Tio Joca!”

Pois é, dez anos depois e está lá, ele mesmo, o Tio Joca em sua versão patriota, acenando para o alto com um celular piscando na mão, pedindo intervenção de drones, etês, e qualquer força sobre-humana que o tire do abismo comunista que o espreita por todos os lados. Comunistas? Isso mesmo, comunistas... Mas ninguém falou pro Tio Joca que faz mais de trinta e três anos que nem a Alemanha Oriental existe mais, e que nem a Rússia é mais socialista? Ninguém falou?

Não, ninguém falou... Na verdade, ninguém tem falado com o Tio Joca há pelo menos quatro anos, desde que ele passou a ter a certeza que a Globo e o Itaú são comunistas. Imagine o que é quatro anos na vida de um idoso... E a Tia Neide, alguém tem notícia?

Notícia não é bem a palavra, mas parece que está circulando nas redes uma foto onde se vê perfeitamente Tia Neide rezando ajoelhada, cantando hino nacional para um pneu à frente de um quartel... Mas seria ela mesma? A doce, quieta e quase inexistente Tia Neide? Como é que ela foi parar lá?

Ninguém sabe ao certo, mas nessa manhã, um sobrinho distante recebeu um zap e só podia ser dela mesmo, embora no perfil só tivesse uma bandeira nacional. O zap dizia que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva tinha morrido numa cirurgia na laringe e que fora substituído por um sósia... É sério isso? Sim, seríssimo... Tia Neide, ao que parece, acredita piamente nessa história e, para o desencanto todo nosso, o esquema foi flagrado porque o sósia não tinha a ausência de um dos dedos.

Pois é, tanta coisa se passou nos últimos anos e não demos conta do tanto que esquecemos Tio Joca, Tia Neide, e tantos tios, tios-avôs, avós, pais e mães, ao relento e entregues aos engodos que a extrema-direita mundial (por aqui sua versão bolsonarista-tupiniquim) estava jogando dia após dia ali mesmo, no zap.

Lembra como ficaram felizes com seu primeiro smartphone, e mandavam bom dia, dia após dia, todos os dias? Pois é, faz tempo que nem bom dia chega. Tem reparado? Os filhos morando longe, outros brigados mesmo, divididos por razões políticas e não políticas... Daí veio a pandemia, e isolamos por necessidade Tio Joca e Tia Neide, ninguém queria vê-los mortos, não é mesmo? E agora, no bem da verdade, ninguém quer é mais vê-los, ou sequer se lembra deles... Mas e os churrascos?

Ah, os churrascos... Essa história todos sabem: um terço da família se une de um lado, um terço do outro, e o terço que sobrou está indiferente a todos, trabalhando duro, vencendo seu leão do dia e o negativo do cheque especial que só aumenta em espiral infinito.

Mas ninguém vai fazer nada? Como seria possível resgatar Tio Joca e Tia Neide de um universo totalmente paralelo?

Sabe, não tenho a resposta para isso, não mesmo... Mas se fosse meu tio, meu tio mesmo, na idade em que ele está, na infelicidade, medo e pavor em que se encontra, eu ligaria, sabe? Só isso, e falaria: hei tio, bora nesse fim de semana assar aquele churrasco? Saudade, tio... Volta pra casa, tio.

Ah, vai ter picanha.

 



De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. Escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'
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