O Olho do Furacão#1 - Uma carta de amor à Constituição

É um Brasil de evangélicos e católicos. Um Brasil de pretos e pardos de religião de matrizes africanas. Um Brasil indígena, caboclo e cafuzo. Um Brasil de brancos e amarelos, um Brasil de muçulmanos e de judeus também. Um Brasil ateu. Um Estado laico. Um Brasil da Direita à Esquerda, e no centro, você, Constituição, a mais cidadã, a mais humanista e democrática, e que mal nos acostumamos a amar e ter nos braços.

Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil 


Por Wil Delarte*

Eu tinha sete anos quando Ela surgiu numa primavera de 1988. Era muito moleque para entender seu tamanho e beleza.

Lembro-me que na escola eu amava hastear a Bandeira, cantar seu hino. Nem imaginava que aquele patriotismo todo da escola era resquícios de tempos sombrios dos quais Ela havia nascido.

Quando no ensino técnico, anos mais tarde, eu ganhei meu primeiro exemplar, algo de grandioso pareceu crescer cá dentro: “Constituição da República Federativa do Brasil”, era o título garboso daquele livro. Foi amor à primeira vista, hoje eu sei.

Nossa Constituição é bem grande, é verdade, duzentos e tantos artigos, e tem um motivo justificável para isso: uma Constituição reduzida a alguns artigos bases, e que basicamente necessita de Emendas posteriores para existir, como é a americana, seria muito frágil: a sanha dos militares e da elite que os apoiou, e que usurparam o poder por 20 anos, era (é?) grande demais para que deixássemos apenas um esqueleto constituinte e, ao abismo do futuro, o temor de sua carne nunca existir, ou existir em pedaços destroçados, contaminados pelo horror do fascismo que dormiu em nossas camas por todo o século XX.

Era preciso proteger todos de todos, o Estado dos homens sórdidos, as minorias de um Estado e dos homens sórdidos. Por isso ela nasceu assim, gigante, analítica e cidadã. Ganhou esse último apelido que a deixa ainda mais elegante, mais linda. Esse amor só cresceu, só me fez crescer.

Com Ela veio o que chamamos de Nova República, uma República novinha em folhas, novinha em direitos e garantias jamais vistos juntos, unidos. Direitos trabalhistas. Direitos humanos. Direito ao voto. Direito a igualdade entre os gêneros. Direito de terra aos nossos povos originários e quilombolas. Quinhentos anos e um século de sangue e luta escorre por cada artigo da nossa Carta Maior de 88. E eis aqui, então, uma declarada carta de amor a Ela, e algumas confissões.

Confesso que de 2015 para cá tenho sofrido demais com o seu sofrimento, com os ataques inconstitucionais que sistematicamente vem esgarçando seu tecido, colocando à prova cada conquista nossa, cada direito nosso, e todos os freios pensados e realizados em cada linha sua.

O maior antídoto do Estado de Direito, e tão engenhosamente delineado em nossa Constituição, são os freios que impedem um Poder de se sobressair sobre o outro. Explico-me: é um sistema chamado de “Freios e Contrapesos”, são freios e ao mesmo tempo garantia, uma garantia de que Ela poderá viver por si só e não ao sabor dos homens sórdidos do momento.

Um Poder freia o outro, um fiscaliza o outro, nossa Constituição foi pensada assim, para se autocontrolar. Um sistema vivo, tenso, mas lindo... Percebe? Pelo horizonte e utopia humanistas, a Democracia é o mais apurado simulacro da Vida, mas é apenas uma ideia que compartilhamos, em última instância, só um papel se não lutarmos para realizá-la dia após dia, para, sobretudo, protegê-la. Se há fome, não pode haver Democracia. Amá-la, a Democracia, foi o que me fez amar a Carta ainda mais, e vê-la sofrendo assim, como estava dizendo, também me fez entendê-la melhor e compreender em mim as estruturas dessa paixão.

Confesso que aqui, deste ponto em que nos encontramos, dois sentimentos se misturam: o medo e o alívio. Medo do fascismo que cresce a cada dia entre nós, que ganha voz, dos mais pobres aos mais endinheirados, e que nos divide em dois brasis. É uma onda, é uma reação a diversas forças progressistas que, desde o Iluminismo, volta de tempos em tempos. E sobre isso certamente falaremos mais em outras cartas, porque nesta aqui, que é também o primeiro artigo dessa coluna, só consigo me colocar assim, de forma apaixonada.

O outro sentimento, o alívio, é por saber que você, Constituição, ganhou nesse 30 de outubro de 2022 uma possibilidade de ainda existir, de ainda lutarmos por ti. E foi por muito pouco, foi por um triz! É sabido que se extrema direita reacionária e golpista tivesse levado esse pleito no governo federal, o STF seria modificado cabalmente e um nova constituinte, aos modos venezuelanos, estaria em curso com esse novo congresso eleito que, ressalta-se, é ainda mais reacionário que o de 2018.

A Nova República ganha uma segunda chance, por um triz, é esse o sentimento. Estaremos à altura de ti, Constituição? O Brasil, que tanto trai a si mesmo, que tanto se auto apedreja e sangra em praça pública, o Brasil de Tancredo e Ulisses Guimarães, a Nova República do Brasil ganha mais uma chance de cumprir seu ideal.

Desse ponto em que nos encontramos, uma frente ampla e democrática se abre como resistência ao fim. Diferentes se juntam e se abraçam em sua diferença, por ti, Constituição.

É um Brasil de evangélicos e católicos. Um Brasil de pretos e pardos de religião de matrizes africanas. Um Brasil indígena, caboclo e cafuzo. Um Brasil de brancos e amarelos, um Brasil de muçulmanos e de judeus também. Um Brasil ateu. Um Estado laico. Um Brasil da Direita à Esquerda, e no centro, você, Constituição, a mais cidadã, a mais humanista e democrática, e que mal nos acostumamos a amar e ter nos braços.

O Brasil de Fernando Henrique, Covas e Dilma, resiste. O Brasil de Erica Malunguinho. O Brasil de Tebet, Marina e Guajajara; de Betinho, Marielle e Chico Mendes. O Brasil de Alckmin e Luiz Inácio, esse é o nosso Brasil, essa é a nossa luta: permanecer aqui, cabeça erguida e bandeira hasteada.

Luta contra a mentira e seus pais. Luta pelo diálogo e pela empatia, luta pelos verdadeiros valores cristãos, pela fraternidade entre nós e entre os povos, justiça, liberdade e igualdade, luta para trazer à luz milhões de vítimas das sombras, milhões de vítimas do obscurantismo do fascismo e da perversidade de seus homens sórdidos. Luta pela memória de milhões de indígenas, memória dos navios negreiros, memória dos exilados, mutilados e torturados pelo golpe de 64, memória de setecentos mil mortos pela pandemia da covid 19.

Contra uma avalanche de narrativas e notícias falsas, fraudulentas, é que estamos aqui, no Olho desse Furacão! Mas não se enganem, irmãos, irmãs, não se engane, amada Constituição, a Verdade é como uma nascente d´água: podem colocar trincheiras, podem erguer mil barreiras, ela sempre encontrará o mar.

VEJA ABAIXO O VÍDEO COM O TEXTO GRAVADO:





De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB. Escreve mensalmente a coluna 'O Olho do Furacão no Cotia e Cia'
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