Em mais uma ‘Crônica Envenenada’, Wil Delarte escreve sobre o revoltante episódio de Genivaldo de Jesus, torturado e morto por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF). “Um rio secou-se em mim desde o momento em que vi a paralisia daquelas pernas para fora do capô de um carro em fumaça. E se você perdeu a capacidade de chorar, ainda que sem lágrimas, diante de uma cena assim, é porque o Horror venceu, e o ideal humano se perdeu em nós”. Leia na íntegra:
Arte: @w.delarte
Desde o advento do Holocausto na 2ª Guerra Mundial, que na arte convencionou-se a perceber um limite entre o mundo e sua representação. Em suma, descobriu-se que o “Horror da vida real” é um desses limites.
Como transmitir o sentimento e a sensação de alguém em execução numa câmara de gás? Não dá. Não há crônica possível para isso. Não há poema, filme, nem quadro que dê conta de pintar o Horror que está há cem mil léguas abaixo do humano.
Mas quando ele, o Horror, se apresenta com sua cara crua e horrenda, numa própria caricatura de si, não pode receber de nós apenas o silêncio, o petrificante silêncio. Não, é preciso um barulho estrondoso que, ao menos, dê nome a ele.
Uma Câmara de Gás da Polícia Rodoviária Federal.
Uma Câmara de Gás.
Sim, o que ocorreu com o negro Genivaldo Jesus dos Santos no dia 25 de maio de 2022 no município de Umbaúba, em Sergipe, que culminou em sua morte, sem qualquer caricatura, foi: Tortura e Asfixiamento em Câmara de Gás Improvisada, seguidos de Execução Sumária pelo Estado Brasileiro.
Uma sequência de imagens comparáveis ao outro Horror inominável que ocorreu dois anos antes na mesma data com o americano e negro George Floyd, também asfixiado pela polícia e mãos do Estado. Dessas coincidências que é difícil acreditar serem coincidências. Seria um recado direto em nossa preta jugular?
Lá, nos States, o país inflamou. E aqui? Vidas pretas não importam, quando brasileiras?
Quando foi que naturalizamos tanto o Horror a ponto de recebê-lo com apatia e indiferença? Na mesma semana, outra chacina, e a mais letal da história do Rio, com vinte e oito almas canceladas, aumentou o tom da rotina de extermínio de pretos e pretos de tão pobres no país. O silêncio ainda continua no dia de hoje, sete dias depois da morte de Genivaldo, numa fria manhã em que me ponho a traçar essas linhas envenenadas.
O silêncio continua, e só revela o tamanho do abismo que não mais sondamos, que nos jogamos.
Um rio secou-se em mim desde o momento em que vi a paralisia daquelas pernas para fora do capô de um carro em fumaça. E se você perdeu a capacidade de chorar, ainda que sem lágrimas, diante de uma cena assim, é porque o Horror venceu, e o ideal humano se perdeu em nós.
Acordei no outro dia seguinte com um mar em ressaca. Não há água para quem me vê de fora, mas continuo a chorar. É um rio intermitente, que deságua para dentro. Minha alma é um mar de genivaldos asfixiados, assassinados pelo nosso projeto de país.
Levantei-me e, no espelho, só vi Genivaldo. E você, ainda vê algo? O chicote é um só: ou você está na ponta, ou você ajuda a segurá-lo.
Ou você está no cabo.
É preciso ter raiva, muita raiva para afrontar essa força enorme que desaba sobre nossas cabeças travestida de bolsonarismo, mas que é alimentada nesse país desde a invasão de 1500.
Só tristeza não basta. Tristeza não faz nada desde que o samba é samba, além de samba.
É preciso rock pesado, tambores, bumbos, surdos e alfaias soando alto. Minhas lágrimas secaram e se tornaram um mar de lava.
De raiva, de muita raiva.