Crônica Envenenada #5 - Maldição

Por isso, irmãos, cuidado, muito cuidado com o que lançam aos ventos por aí, pois, como sempre gostava de afirmar minha mãe, se um galo canta ou um anjo diz amém, já era. Um galo cantou. Cantou. E seguiu cantando, cacarejando e tecendo cá dentro essa inútil e solitária manhã

Foto: Wil Delarte (por Vanessa Ferreira)

Tenho uma lembrança recorrente da infância que, não sei o porquê, sempre me volta com alguma mudança, feito uma série de tevê com infinitos episódios, só que neste caso, é o mesmo e diferente episódio, repetindo-se de forma eterna: um espiral para todos os lados.

Hoje, pela manhã, ao olhar para um bloco de notas, ela, a lembrança, veio-me nova e abruptamente. A personagem é uma tia minha, Tia Cida, a primeira pessoa que me disse que n'algum dia eu seria escritor.

Costumava passar minhas férias por lá, infortunando-a com meus primos. Sim, infortunando. Jardim D'Abril, década de 80. Tia Cida... Saudade. Há tempos não a vejo. Devia ter uns 7 ou 8 anos, e na cozinha da sua casa, intrometendo-me como sempre na conversa dos adultos (meu maior hobby da primeira infância), eu disse que fulano não teria "Cacife" para fazer alguma coisa. A tal coisa.

Não me recordo que coisa nem de que fulano ela e minha mãe conversavam, apenas me lembro que ela fez uma pausa dramática, dessas seguidas de alguma trilha com câmera lenta, olhou para mim profundamente e disse que eu gostava de palavras difíceis e (com um ambíguo tom de maldição) que “um dia eu seria escritor”.

Emudeci... Eu, o menino das palavras difíceis, não disse nada. Só fiquei reparando seus olhos oraculares na medida em que ela retomava a conversa com minha mãe.

Às vezes a lembrança me vem como minha tia retornando a conversa com uma amiga. A amiga já se tornou, certa vez, minha prima adulta, já crescida. Ilusão, minha prima mal havia iniciado a adolescência nessa época... É difícil entender o jogo das memórias, mas sinto que nada em nossa mente é fortuito, é tudo seta para o futuro, e para dentro. Futuro que, por muitas vezes, luta contra todas as forças e torrentes para se realizar. Freud explica. Ou quase.

Enfim, algum sentimento de orgulho e medo deve ter me brotado ali. Essa sua frase, e o jeito que me olhou, nunca me fugiram da memória, essa cena sim, sempre me retorna igual, mas com trilhas e pausas diferentes. Já me veio até com a trilha de Psicose. Eita, Hitchcock... Tenso. Por isso, irmãos, cuidado, muito cuidado com o que lançam aos ventos por aí, pois, como sempre gostava de afirmar minha mãe, se um galo canta ou um anjo diz amém, já era. Um galo cantou. Cantou. E seguiu cantando, cacarejando e tecendo cá dentro essa inútil e solitária manhã.



De poesia à ficção, Wil Delarte tem cinco livros autorais, além de publicações em diversas mídias e antologias. Também possui composições na área musical, com letras gravadas por artistas do Rock e da MPB


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